“Brasil precisa de um plano menos ideológico”, diz Mendonça de Barros

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Em entrevista à Globo Rural, o economista diz que recessão é inevitável e recomenda cautela aos produtores neste momento de crise.

 

*Conteúdo publicado originalmente na edição 415 da Revista Globo Rural (maio/2020)

No início dos anos 1970, José Roberto Mendonça de Barros cuidava da fazenda da família, no Paraná. Foi lá, enquanto escrevia sua tese, que viu a soja começar a dominar as lavouras brasileiras. É com esse olhar refinado em quase 50 anos de profissão que o economista Mendonça de Barros atesta sem hesitar: esta é “a crise”, e não “mais uma crise”. É o marco zero de um novo mundo.

Ele considera o agro uma peça-chave no quebra-cabeça da reconstrução, lembrando que o PIB agropecuário cresceu 15% no acumulado desde 2015. “Um oásis em meio a setores dilacerados por perdas irreversíveis.” Um espanto, como ele definiu em nossa conversa de uma hora por telefone. Mas não um acaso. A resiliência a crises é um trunfo calcado em tecnologia e competitividade. E, claro, pela combinação de trabalhono campo e diplomacia agrícola dos governos.

Aliás, é ao movediço terreno político que Mendonça de Barros reserva suas preocupações e críticas contundentes. Para ele, o governo do presidente Jair Bolsonaro ainda não entendeu que, com ou sem isolamento social, a recessão é inevitável. E o principal: precisa, com urgência, de um plano mais concreto e menos ideológico para tirar o Brasil do buraco.

“É a segunda vez, recentemente, que o país sofre uma grande recessão e o agro cresce. Não é coincidência””

GR: Esta é só mais uma crise ou é “a crise”, uma mudança de era?
Mendonça de Barros: É “a crise”. É a maior crise global desde a Segunda Guerra Mundial. E vai demorar para se ter clareza do tamanho das consequências.

GR: Dá para comparar com alguma outra, como a de 2008?
Mendonça de Barros: 
Ela tem uma característica que a torna qualitativamente pior: há um mergulho instantâneo na economia mundial. É por isso que é pior do que a de 2008. Provocou uma parada súbita no funcionamento do sistema econômico, mas não foi associada ao sistema financeiro.É fruto de um vírus desconhecido, que a humanidade não tem defesa. Produz muita ansiedade e medo, além da parada nos negócios. É por isso que, provavelmente, terá efeitos mais demorados do que as anteriores.

GR: Já há como mensurar o tamanho das perdas na economia mundial?
Mendonça de Barros: 
A projeção do FMI cita uma queda de 7,5% na economia da Europa, 5,9% nos Estados Unidos e 5% no Brasil. Já estamos em recessão, e isso é um desafio enorme. Mas, assim como em outras crises, o setor agropecuário vai ter um desempenho melhor do que os demais. Primeiro porque fez um esforço de adaptação, especialmente as agroindústrias, adotando protocolos de venda urgente, normas de higiene e grupos menores trabalhando. E o país, exceto o Rio Grande do Sul, está colhendo uma ótima safra (de grãos) de verão. Está funcionando normalmente, abastecendo cidades e exportando. Isso dá tranquilidade, pois não há risco de faltar nada. A agropecuária mostrou resistência e capacidade extraordinárias.

GR: A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, diz que a crise é uma oportunidade para
o Brasil abrir mercados. O senhor concorda?
Mendonça de Barros:
Desde 2019, produtores de algodão, açúcar e até de soja vêm fechando contratos futuros. Isso significa que, além da qualidade colhida ser boa, há grande quantidade e preços em reais excelentes. Soma-se isso aos preços internacionais dos fertilizantes, que caíram, o que permite abrir uma margem operacional para grãos bem interessante. Outro fato é que o valor do frete caiu. Por isso, a fala da ministra é verdadeira. Há países tentando proteger seu mercado interno e dificultando exportações. Então, muitos buscam o Brasil, que é um fornecedor grande, confiável e de qualidade. A perspectiva é favorável. O único que está sofrendo é o etanol, pois o petróleo colapsou.

GR: A elevada dependência da China pode ser um risco, ainda mais diante dos recentes incidentes diplomáticos?
Mendonça de Barros: O Brasil hoje não depende de um só importador. Vendemos para a Ásia inteira, Oriente Médio e, apesar do protecionismo, à Europa. Também estamos ampliando as relações coma África. Não tenho preocupação com isso. Embora o grande fornecedor ainda sejam os Estados Unidos, a China vem aumentando suas compras do Brasil. Isso porque temos mostrado ser um fornecedor confiável. Mas é preciso continuar abrindo mercados. Não dá para sentar na sombra só porque a China é um grande comprador. O agro e a diplomacia agrícola, em que pese que a parte ideológica do governo atrapalhe volta e meia, têm obtido resultados.

“É preciso continuar abrindo mercado. Não dá para sentar na sombra só porque a China é um grande comprador””

GR: Especialistas preveem mudanças dehábitos de consumonaChina após a pandemia.Qual seria o impacto, em especial para o Brasil?
Mendonça de Barros:
Uma parte da mudança de hábitos vai acontecer. Sabemos que a gripe suína africana fez estrago na produção chinesa. Eles vão ter de importar mais carne suína, mas vão reconstruir a indústria. Se aumentar a proporção de carne industrial, a demanda por ração e farelo de soja vai crescer. Também é provável que o governo façauma campanha para coibir o consumode animais exóticos. Caso isso aconteça, o substituto é a proteína industrial. Acho altamente provável uma maior ingestão de carnes, mas provenientes de criações em condições de higiene e tecnologia. Neste caso, o mercado para carnes e de grãos do Brasil segue aumentando.

GR: A crise impactou os pequenos produtores, em especial de hortifrútis. Como manter o equilíbrio e recuperar mercado interno?
Mendonça de Barros:
 Temos de separar uma coisa que é de curto prazo, ainda que produza dificuldades, de uma tendência. No curto prazo, todo mundo ficou em casa de repente, e os fluxos comerciais se desequilibraram. Os restaurantes fecharam e certos tipos de demanda caíram abruptamente. No caso dos perecíveis, com o fim das feiras, não é simples para o pequeno produtor entregar na cidade. Houve esse desarranjo, mas não quer dizer que tenha havido uma mudança estrutural. Creio que a produção orgânica vai sair mais forte e, se alguém perder um pouco, serão certos alimentos processados. Mas a hora que esse confinamento terminar, tende a voltar, pois é uma demanda reprimida.

GR: Apesar da recessão, vários estudos apontam que o agro brasileiro deve crescer
em2020. O senhor concorda?
Mendonça de Barros: 
Sim. Nossa projeção é de uma queda no PIB total do Brasil de 4,7%, mas alta de 1,5% no agronegócio. E isso pode ser atribuído ao crescimento da produção. A recessão do Brasil começou em 2014. Houve PIB negativo em 2015 e 2016. Em 2017, 2018 e 2019, crescemos em torno de 1%. Considerando os PIBs setoriais, no acumulado até 2019, a construção civil caiu 27%, e a indústria de transformação, 9,4%. E a agropecuária?Cresceu 15%. É um espanto. É a segunda vez, recentemente, que o país sofre uma grande recessão e o agronegócio cresce. Não é coincidência. Há 40 anos, o setor usa da ciência e da tecnologia para aumentar a produtividade. E isso gera aumento de renda, o que permite enfrentar intempéries. Outro aspecto é que disputamos competitivamente no mercado internacional, permitindo que a escala de produção suba e os custos fixos fiquem mais diluídos. A junção de competitividade e tecnologia faz o agro ser o setor que mais contribui para o crescimento do Brasil.

GR: Como o senhor avalia a postura do presidente Jair Bolsonaro diante dos efeitos da pandemia?
Mendonça de Barros: 
Não sou médico, mas, pelo que leio, a postura dele é equivocada. Acho que ele não internalizou o tamanho da recessão que vamos passar. Liberar o isolamento social um mês antes ou depois não vai mudar a recessão e o problema do emprego. Já está dado que temos retração por todos os lados,com exceção do agro. O melhor que podemos fazer, do ponto de vista econômico, é dar o maior suporte possível para o custo social desta queda,com o apoio a pequenas empresas, aos pobres e aos trabalhadores informais, para poder retomar lentamente. Tenho a impressão de que o governo ainda não absorveu o tamanho do tranco. Já está passando da hora de começar a pensar no que terá de ser feito, e com que velocidade, para a retomada da recessão.

GR: Pensando no pós-crise, o senhor acredita que vá emergir um mundo mais protecionista e menos globalizado?
Mendonça de Barros:
É provável que muitas empresas e países queiram trazer mais para perto a produção de itens críticos, como respiradores. Mas não é fácil refazer cadeias, isso leva anos. Outro ponto é: como vai ser a relação entre China e EUA? Vai piorar ou será mais cooperativa? Minha tranquilidade, olhando o agro, é que não é fácil ter protecionismo em alimentação. Então, o Brasil vai seguir, em qualquer circunstância, tendo espaço no mercado internacional.

GR: Quais são, na sua visão, as três principais lições dessa crise?
Mendonça de Barros:
 A primeira é que, nesse mundo muito globalizado, sanidade e saúde exigem atenção maior, pois os riscos são grandes. Segundo, é inaceitável o grau de pobreza e má distribuição de renda no Brasil. De repente, você tem mais de 50 milhões de pessoas que não têm o que comer. A terceira lição é por que o Brasil não pode produzir com competência produtos como respiradores, por exemplo? No agro, somos muito competentes. Mas boa parte da nossa indústria não passa por esse teste. Como o agro conseguiu? O Brasil precisa olhar por que o agronegócio é tão competente, resistente e produtivo.

GR: Se o senhor pudesse dar um conselho para o produtor rural neste momento, qual seria?
Mendonça deBarros:
 Cautela. Na recessão, o caixa disponível é o fator mais importante em qualquer empresa. Não é hora de comprar terra do vizinho, e sim ter todo o cuidado. Um fluxo de caixa consistente dá uma tranquilidade danada. Só empresa frágil é que tem de ir ao banco.

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